quarta-feira, 4 de agosto de 2010

"Cada qual com a sua Bíblia" II

Saca aqueles livrinhos chineses, em que abrimos uma página e lemos a nossa sorte? Não lembro se é o I-Ching que é assim. Então, daí abri o Pequenos Poemas em Prosa (ou Spleen de Paris, se preferir) e caiu num conto que amo de paixão, chamado Cada qual com a sua Quimera. Como poderia ser tão exato? Como posso me identificar tanto com um autor que viveu no século XIX? Concluí que sou uma maldita também. Talvez seja uma redundância, já que esse parece ser o mal da maioria dos poetas. Sei lá, tô saindo do foco.
Enfim, segue abaixo o conto com o qual tanto me identifico:

Cada qual com a sua Quimera

Sob um grande céu cinzento, numa grande planície poeirenta, sem caminhos, sem gramados, sem uma urtiga, encontrei vários homens que andavam curvados.
Cada um deles carregava nas costas uma enorme Quimera, tão pesada quanto um saco de farinha ou de carvão, ou os apetrechos de um soldado da infantaria romana.
Mas a monstruosa besta não era um peso inerte; pelo contrário, envolvia e oprimia o homem com seus músculos elásticos e possantes; grampeava-se com suas duas vastas garras no peito de sua montaria; e sua cabeça fabulosa sobressaía acima da fronte do homem, como um daqueles capacetes horríveis com os quais os antigos guerreiros esperavam acirrar o terror inimigo.
Interroguei um desses homens, e perguntei-lhe aonde iam assim. Respondeu-me que de nada sabia, nem ele, nem os outros, mas que evidentemente iam a algum lugar, já que eram levados por uma invencível necessidade de andar.
Coisa curiosa de se notar: nenhum dos viajantes parecia irritado com a besta feroz pendurada em seu pescoço e colada em suas costas; dir-se-ia que a considerava como fazendo parte de si mesmo. Todos esses rostos cansados e sérios não demonstravam desespero; sob o céu, com os pés mergulhados na poeira de um solo tão desolado quanto este céu, eles caminhavam com fisionomia resignada daqueles que estão condenados a ter sempre esperança.
E o cortejo passou a meu lado e afundou na atmosfera do horizonte, no lugar em que a superfície arredondada do planeta se esquiva à curiosidade do olhar humano.
E, durante alguns instantes, teimei em querer compreender esse mistério; mas em seguida a irresistível indiferença se abateu sobre mim, e me deixou mais duramente oprimido do que eles próprios por suas esmagadoras Quimeras.

Charles Baudelaire

Nenhum comentário:

ShareThis